24/10/2016 às 12:41, atualizado em 24/10/2016 às 12:46

Revista selecionada pela Lei de Incentivo à Cultura ajuda a tirar moradores da rua

Lançada em novembro, Traços atende 70 pessoas. João Paulo Mesquita é uma das 60 pessoas que participam do projeto e já saíram das ruas

Por Mariana Damaceno, da Agência Brasília

“Quero ser doutor em direito, porque, sendo isso, até o presidente vai me chamar de excelência.” O desabafo é de João Paulo Mesquita, de 27 anos, um dos porta-vozes da cultura, como são conhecidos aqueles que vendem a revista Traços, lançada em 5 de novembro de 2015. O jovem viveu pelas ruas do Plano Piloto por pouco mais de duas décadas e há cerca de três meses mora com uma tia em Céu Azul (GO).

Lançada em novembro, Traços atende 70 pessoas. João Paulo Mesquita é um dos 60 ex-moradores de rua beneficiado do projeto.

A revista Traços atende 70 pessoas. João Paulo Mesquita é um dos 60 ex-moradores de rua beneficiados do projeto. Foto: Gabriel Jabur/Agência Brasília

As cicatrizes que João Paulo carrega — pelas brigas que já teve na rua e pela indiferença de quem passava e parecia não o enxergar — também marcam quem dividia com ele o mesmo espaço inseguro. Mostrar para essas pessoas que elas são iguais a qualquer outra e ajudá-las a recuperar a autoestima é um dos principais objetivos do projeto, que já fez 60 ex-moradores de rua procurarem um lar para recomeçar. “A partir do momento em que a pessoa que o ignorava passa a conversar sobre a revista, ele se sente visto, valorizado”, explica o editor-chefe e idealizador da publicação, André Noblat.

[Olho texto=”“A partir do momento em que a pessoa que o ignorava passa a conversar sobre a revista, ele se sente visto, valorizado”” assinatura=”André Noblat, editor-chefe e idealizador da Traços” esquerda_direita_centro=”esquerda”]

Segundo ele, o primeiro impacto da revista é em relação à violência. Noblat estima que cerca de 70% de quem ingressa no projeto tem envolvimento com drogas. Aos poucos, a maioria, assim como no caso de João, abandona o vício e volta a sonhar. O morador do Entorno de Brasília começou a usar entorpecentes aos 16 anos, depois que veio de Goiás para procurar o pai. Após quatro meses vendendo a publicação, decidiu se internar em uma clínica de reabilitação e largar o crack. “Não é fácil. Todo dia eu sinto vontade de fumar, mas eu penso em aguentar mais cinco minutos, e o tempo vai passando”, conta João Paulo.

O jovem voltou a estudar, faz curso de cabeleireiro e, em paralelo com a Traços, começou a vender cosméticos. Nos dias com a rotina mais puxada, vai ao [tooltip title=”903 Sul, telefones (61) 3226-3393 e 3225-7889″ placement=”top”]Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop) do Plano Piloto[/tooltip], vinculado à Secretaria do Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, que lhe presta atendimento psicológico. Ele também aguarda a liberação do auxílio excepcional (uma ajuda de custo no valor de R$ 600 para o pagamento de aluguel) — outro benefício da pasta. Em parceria com o projeto da revista, o centro também foi o responsável pela seleção dos primeiros 50 moradores de rua que iniciaram a venda da Traços.

Segundo Diogo Zelinschi, assessor do Centro Pop do Plano Piloto, o diálogo sobre a Traços começou há muito tempo. Tanto para o governo quanto para os idealizadores do projeto era essencial que essas pessoas tivessem acompanhamento psicossocial.

“Não é um processo simples, em que só de entrar na revista a pessoa sai da rua”, pontua o editor-chefe, que conta ter levado dez anos para o projeto sair do papel. Antes, ele e a equipe estudaram como a iniciativa, que existe em outras 123 cidades do mundo, funcionava em outros países. “Percebemos que, nos locais onde dá mais certo, há preocupação com quem está participando e acompanhamento próximo.”

Cerca de 30 dos 70 beneficiados com a iniciativa fazem acompanhamento no Centro Pop com assistentes sociais e recebem auxílios como cesta básica e outras necessidades. “Era uma demanda da própria secretaria algum projeto que promovesse renda para essas pessoas. Com essa parceria, conseguimos atender efetivamente parte dessa população e fazer com que elas mudassem de rumo”, afirma o assessor do Centro Pop.

Zelinschi explica que o acompanhamento é feito tanto na casa dos ex-moradores de rua, quanto na unidade da Asa Sul. A ideia é manter relação de proximidade e ajudar as pessoas a retomar a vida em uma casa e ter emprego, por exemplo. “Muitos não eram mais acostumados a ter um lar, pagar aluguel, conviver com a família. O trabalho é garantir que eles consigam passar por isso sem dificuldades.”

Cobertura de pautas culturais

Formada por aproximadamente 15 pessoas, a equipe da revista é dividida em dois núcleos: um de acompanhamento social — que tem parceria com o Centro Pop — e outro de jornalismo.

A publicação mensal é voltada para cobertura de pautas culturais, e não visa lucro para os idealizadores. Selecionado pela Lei de Incentivo à Cultura, o projeto tem 70 pessoas que comercializam a revista e outras 20 em fila de espera. A tiragem é de 10 mil exemplares por mês, dos quais são vendidos cerca de 7 mil.

Em meio às páginas bem coloridas, com leiaute e conteúdo que valorizam a arte, ainda há espaço para, a cada mês, contar, na coluna 3×4, um pouquinho mais sobre essas pessoas que enxergaram na revista um meio de transformar a vida.

Com o dinheiro que ganha, João Paulo se mantém e ajuda financeiramente a tia Elizabete Boteiro Carvalho, de 49 anos. “Tinha dias em que eu não conseguia dormir, preocupada com ele, que é um filho para mim”, desabafa a mulher, que perdeu o único filho aos 19 anos, assassinado por traficantes.

Segundo André Noblat, a média de renda dos vendedores é de R$ 800 mensais, mas há quem tire entre R$ 2 mil e R$ 3 mil por mês. A matemática do projeto é simples: a revista custa R$ 5, dos quais R$ 4 vão para o vendedor e R$ 1 para a iniciativa. Ao começar, o morador de rua ganha um crédito de 20 revistas, que ele vende e investe nas outras.

[Olho texto=”“Aqui (na revista) está cheio de gente que dá a volta por cima, que se supera, e eu também vou conseguir”” assinatura=”João Paulo Mesquita, porta-voz da cultura da revista Traços” esquerda_direita_centro=”direita”]

Páginas que transformam

Antes do lançamento de cada edição, todos fazem uma leitura coletiva do conteúdo, que, segundo Noblat, passa por um rigoroso controle de qualidade. A meta é que em breve os porta-vozes da cultura também estejam envolvidos em todo o processo de definição da pauta. “Queremos que eles se sintam valorizados, vendendo a melhor revista que somos capazes de fazer.” A Traços foi vencedora, em quase um ano de existência, de oito prêmios — nacionais e internacionais — por quesitos como fotografia e diagramação, além de melhor impresso.

João Paulo é um dos que relê e aprende com cada página. Ao folhear a 11ª edição, aponta para casos de superação que hoje o inspiram a querer um futuro diferente. “Aqui [na revista] está cheio de gente que dá a volta por cima, que se supera, e eu também vou conseguir.” Ele sonha em fazer doutorado em direito fora do País.

O projeto está inscrito para continuar incluído na Lei de Incentivo à Cultura no ano que vem. Para o primeiro ano, o periódico arrecadou por meio da legislação pouco mais de R$ 900 mil. As empresas que patrocinam ganham incentivos fiscais do governo, como abatimento de impostos.

As revistas são vendidas pelas ruas do Plano Piloto e de Taguatinga ou em pontos parceiros a exemplo de bancas de jornal e cafés. Para ingressar e se manter no projeto, é necessário que o interessado siga um código de conduta, disponível sempre nas primeiras páginas da revista. São dez regras, que envolvem não trabalhar sob o efeito de álcool ou de drogas, não pedir doação enquanto estiver uniformizado com o crachá e o colete do projeto e não oferecer o produto acompanhado de crianças.

Edição: Paula Oliveira