23/09/2017 às 09:23, atualizado em 25/09/2017 às 10:25

Tradição e resistência marcam o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

Referência nacional, o primeiro evento do gênero no País acumula 50 edições recheadas de momentos icônicos, como a presença do ator Grande Otelo, em 1969, com o filme Macunaíma

Por Cibele Moreira, da Agência Brasília

De uma ideia na universidade para um dos mais renomados eventos cinematográficos do País. O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro encerra a 50ª edição neste ano com uma bagagem de momentos memoráveis ao longo da história. A premiação dos vencedores será na noite deste domingo (24), no Cine Brasília (106/107 Sul).

Chegada do Ator Grande Otelo na 5ª edição do Festival, em 1969. Foto: Arquivo Público do Distrito Federal/Fundo Fundação Cultural do Distrito Federal

Chegada do Ator Grande Otelo na 5ª edição do Festival, em 1969. Foto: Arquivo Público do Distrito Federal/Fundo Fundação Cultural do Distrito Federal

O professor, cineasta e programador do Cine Brasília, Sérgio Moriconi, relembra fatos marcantes, como a criação da Primeira Semana do Cinema Brasileiroprecursora do festival, com uma trajetória de resistência e valorização da produção nacional.

Segundo ele, o projeto surgiu em aulas de cinema na Universidade de Brasília (UnB) ministradas por Paulo Emílio Salles Gomes, em 1965. O curso, que durou apenas oito meses, deu bons frutos.

Autor do livro Cinema — Apontamento para uma História, Moriconi explica, na obra literária, que a concepção de um evento voltado à produção cinematográfica brasileira foi encabeçada por Carlos Augusto de Oliveira e José Vieira Madeira, ex-alunos de Gomes, que assinou a curadoria da mostra na época.

[Olho texto=”Pioneiro no País no quesito festival, o evento atraiu a atenção para a nova e promissora capital federal” assinatura=”” esquerda_direita_centro=”esquerda”]

Assim, a Primeira Semana do Cinema ocorreu em dezembro de 1965, no Cine Brasília. O lançamento atraiu a atenção para a nova e promissora capital federal, que, apenas cinco anos depois de inaugurada, promovia o primeiro festival do gênero no País.

Em 1966, veio a Segunda Semana do Cinema Brasileiro, nos mesmos moldes do ano anterior. Na sequência, em 1967, a mostra ganhou peso no segmento e o nome atual: Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

Criado no tempo do regime militar, o festival era tido, nos primeiros anos, como uma ilha onde cineastas, artistas e produtores podiam se expressar livremente, conta Moriconi.

No entanto, com a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 1968, a censura dos militares atingiu a cena cinematográfica, o que causou incômodo entre os produtores culturais.

[Olho texto=”O longa País de São Saruê, do cineasta Vladimir Carvalho, foi retirado da programação do festival pela censura na 7ª edição, em 1971″ assinatura=”” esquerda_direita_centro=”direita”]

O cineasta Vladimir Carvalho é um dos que tiveram obras censuradas e cortadas pelo regime. O longa País de São Saruê foi tirado da programação em 1971, mesmo depois de ter sido aprovado pela comissão de seleção, e a censura só o liberou em 1979, quando ganhou o Prêmio Especial do Júri pelo Festival de Brasília.

Com depoimentos reais, o filme retrata a vida de lavradores, garimpeiros do sertão nordestino, e denuncia a exploração dos trabalhadores pelos donos de terra — motivo que levou à proibição de ser projetado durante boa parte da década de 1970.

Sérgio Moriconi, que frequenta o festival desde criança, lembra a emblemática não exibição do filme em 1971. “Na época da censura do filme de Vladimir Carvalho, eu estava na sessão. No lugar de País de São Saruê, foi exibido o longa Brasil Bom de Bola, que narra a história do Pelé e da atuação dele no futebol brasileiro. A plateia, inconformada com a situação, vaiou”, conta o cineasta.

Depois do episódio, em sinal de protesto, os idealizadores do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro o suspenderam de 1972 a 1974. O evento retornou à cena cultural brasiliense com a oitava edição, em 1975.

8ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 1975. Foto: Arquivo Público do Distrito Federal/Fundo Fundação Cultural do Distrito Federal

8ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 1975. Foto: Arquivo Público do Distrito Federal/Fundo Fundação Cultural do Distrito Federal

A nona, em 1976, também marcou a reabertura do Cine Brasília, que fechara para a primeira reforma. Naquele ano, o filme Xica da Silva ganhou três dos principais prêmios: melhor filme; melhor diretor, para Cacá Diegues; e melhor atriz, para Zezé Macedo.

Nos anos subsequentes, o festival passou a ocorrer anualmente, com a participação de centenas de cineastas e produtores, e levou para milhares de pessoas a oportunidade de assistir a filmes brasileiros fora do mercado comercial.

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Artistas como Grande Otelo, Gloria Pires, Leila Diniz, Reginaldo Faria, Sérgio Mamberti, José Lewgoy, entre tantos outros, marcaram presença nas películas e em debates com o público.

Com o tempo, o projeto se modernizou: os filmes 35 milímetros foram substituídos pelos digitais, e as mostras competitivas expandiram-se para além da telona do Cine Brasília, com reprodução simultânea em novos espaços fora do Plano Piloto, como em Ceilândia, Sobradinho e Taguatinga.

Em 1984, a primeira edição do Festivalzinho, voltado para o público infantil, reuniu 20 animações. E, nos anos 1990, o festival passou a premiar produções brasilienses. Segundo Moriconi, o evento criou um espaço para a nova massa de jovens produtores de audiovisual.

“Temos mais de dois dias voltados para a Mostra Brasília para acomodar a grande quantidade de filmes inscritos. Mesmo assim, há uma seleção, pois não dá para atender todos”, pontua o cineasta e programador do Cine Brasília.

Arquivo Público resgata memória do festival

O Arquivo Público do Distrito Federal tem um grande acervo histórico de fundos culturais e governamentais. O órgão abriga boa parte da trajetória do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, com fotos icônicas — como a de Leila Diniz na piscina do Hotel Nacional —, artigos de jornais, cartazes e vídeos.


Segundo Jomar Nickerson de Almeida, superintendente do Arquivo Público, o local serve de apoio para vários tipos de pesquisas. “É importante levar o conhecimento para o cidadão. Se não houvesse esse espaço, muitas pessoas não conheceriam o que foi o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.”

De acordo com o superintendente, a população começa a se apropriar da história da cidade e de momentos marcantes. O acesso à sede da empresa pública (SGO, Quadra 5, Lote 23, Bloco B, antigo Tribunal Superior Eleitoral) é gratuito, de segunda a sexta-feira, das 9 às 17 horas.

Além da pesquisa no Arquivo Público, o registro fotográfico de momentos que marcaram o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro pode ser visto na exposição Entre Olhares e Afetos, no Museu Nacional (Conjunto Cultural da República, próximo à Rodoviária do Plano Piloto), até 1º de outubro.

Edição: Raquel Flores