07/11/2019 às 09:00, atualizado em 07/11/2019 às 10:40

Nascidas com Brasília: tão perto, tão longe

Na terceira e última reportagem da série, mostramos que o Cruzeiro foi criado em 1959 e se aproveitou da proximidade com o Plano Piloto. Já o Lago Sul, que começou a ser ocupado em 1958, levou anos para se consolidar como cidade por causa da distância

Por Gizella Rodrigues, da Agência Brasília

Ivoone Araújo Eduardo, 88 anos, chegou em Brasília aos 28 anos, com o marido João Eduardo Neto e a filha Leila, na época com apenas 6 anos. O marido era funcionário do Ministério da Fazenda, fora transferido do Rio de Janeiro para a nova capital e se mudou com a promessa de morar na 709 Sul, na Asa Sul. Mas as casas na quadra estavam ocupadas e eles acabaram instalados em uma nova cidade que estava sendo criada nas proximidades do Plano Piloto, projetada pela equipe de Lucio Costa: o Cruzeiro.

A enfermeira aposentada recorda detalhes daquele 30 de março de 1959. “Aqui era tudo Cerrado. Só tinha mato, poeira, gavião, veadinho, cobra, tudo que era bicho. Dez casas estavam sendo construídas, não tinha uma estrada”, conta. “Eu vim tão arrumada, com uma saia de veludo, sapato de verniz, toda bonitinha. Quando cheguei aqui e botei o pé na terra, a poeira subiu, a lágrima desceu”, conta.

A família de Ivoone Araújo Eduardo, 88 anos, foi a primeira a viver no Cruzeiro | Foto: Lúcio Bernardo Jr./Agência Brasília

A família foi a primeira a viver no Cruzeiro. A matriarca escolheu a casa que queria, a terceira da quadra, e mora nela até hoje. Ivoone não esconde o incômodo que a falta de infraestrutura da cidade provocava nos primeiros moradores. “Um mês depois que a gente chegou é que fizeram a pista”, diz. “Eu não queria ficar em um lugar sem luz e sem água. Aí combinaram de mandar o carro-pipa trazer água duas vezes por semana e a (construtora) Camargo Corrêa tinha um acampamento aqui perto e fornecia luz para a gente até 22h”, relata.

Aos finais de semana, funcionários do Grupo de Trabalho de Brasília (GTB), órgão responsável por alojar os novos moradores da capital, disponibilizavam um ônibus para levá-los à Cidade Livre para fazer as compras da semana. Comprava-se em grande quantidade para estocar. Só mais tarde a prática da feira semanal passou a ser comum. A Feira Permanente do Cruzeiro hoje funciona onde era o acampamento da Camargo Corrêa.

Dona Ivoone tinha as chaves das casas e ficou incumbida de mostrá-las aos funcionários do governo federal que eram transferidos, a maior parte deles vindos do Rio de Janeiro, mas, também, de outros estados do Sudeste e até do Nordeste. “Me deram licença do hospital para fazer esse serviço. Eu fiquei mostrando as casas. Lembro que quando chegou o segundo morador ele ficou louquinho, queria ir embora no mesmo dia”, conta a mulher que, no Rio de Janeiro, trabalhava no Hospital dos Servidores do Estado e, em Brasília, ajudou a fundar o Hospital das Forças Armadas (HFA). “Eu entendi ele, quis fazer a mesma coisa. Muita gente não tinha nada, mas eu deixei minha casa no Rio e vim para Brasília”, ressalta.

No começo, o grande motivador para a permanência de Ivoone era financeiro: o marido ganhava três vezes mais. “Ele recebia o salário e uma dobradinha. O salário era pago e, ao longo do mês, o ordenado saía  mais duas vezes”, conta. Com o tempo, a família criou raízes no quadradinho. Os filhos cresceram, se casaram, vieram os netos e bisnetos… “A gente foi acostumando, melhorando a situação. Demorou quase um ano para eu me habituar, mas hoje eu não queria morar no Rio”, fala.

Cemitério e Bairro do Gavião

O Cruzeiro crescia rápido. O governo construiu mais casas. Água e luz, no entanto, só vieram dois anos depois dos primeiros moradores. Na época, a cidade ainda não tinha sido batizada de Cruzeiro. O nome oficial era Setor de Residências Econômicas Sul (SRE-S), mas, ainda não acostumados com as siglas, nenhum dos moradores do local decorava o nome certo.

Registro de inauguração de mercado no Cruzeiro em 1966 | Foto: Arquivo Público do DF

Surgiu, então, o apelido de “cemitério” por causa da situação ainda precária, com vegetação alta por perto e animais transitando nas ruas. “De longe via-se apenas as casinhas brancas no meio da poeira vermelha”, afirma o historiador Rafael Fernandes de Souza, que cresceu no Cruzeiro e escreveu o livro Cruzeiro, retratos de sua história: 1959 a 2009. O local também era chamado de Bairro do Gavião, por causa da grande quantidade desse tipo de animal solto na rua.

Em 1960, um grupo de moradores, insatisfeitos com o nome do local onde moravam, procurou o jornal Correio Braziliense, cuja equipe resolveu batizar a cidade com o nome de Cruzeiro porque ela ficava próxima ao cruzeiro onde fora celebrada a Primeira Missa de Brasília, em 3 de maio de 1957.

Sete anos depois, começou a construção dos prédios, o que deu nova configuração à cidade. O projeto original era inspirado na proposta de apartamentos populares de Lucio Costa, mas acabou desvirtuado. A ideia era um gabarito de 3 andares, a exemplo das quadras 400 da Asa Sul. “Provavelmente, devido à especulação imobiliária conseguiu-se um andar a mais e o setor ficou descaracterizado”, diz o historiador Rafael Fernandes de Souza.

A nova parte da cidade ganhou o nome de Setor de Habitações Coletivas Econômicas Sul (SHCE-S), mas,  ainda resistentes às letras, os moradores pegaram carona na mudança monetária e o setor foi apelidado tal qual a nova moeda à época: Cruzeiro Novo.

Obras de infraestrutura do Cruzeiro Novo | Foto: Arquivo Público do DF

O outro lado da moeda

A menos de 10km do centro da nova capital, os pioneiros da região administrativa mais próxima do Plano Piloto também reclamavam da distância entre o Cruzeiro e a Asa Sul, parte da cidade que já existia. Se eles achavam longe, imagina quem decidiu ir morar no Lago Sul? Numa época, vale salientar, em que nenhuma das pontes estava construída e era preciso dar a volta pelo aeroporto para chegar ao bairro nobre, que só se transformou oficialmente em cidade em 1994. “Na época, grande parte do comércio da Avenida W3 Sul ia até a 508 Sul. Era preciso dar a volta e ir até lá para comprar qualquer coisa, até um cigarro”, lembra o empresário pioneiro Gilberto Salomão, aos 88 anos.

Gilberto Salomão, o primeiro a investir no Lago Sul | Foto: Renato Araújo/Agência Brasília

A ocupação no Lago começou quando a Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap) decidiu construir casas no bairro para servir de residência dos seus diretores. As 15 primeiras, nos conjuntos 5, 6 e 7 da QL 1 (hoje QL 8), ficaram prontas em junho de 1958. Elas não foram construídas em lotes vizinhos, mas salteados, para estimular o interesse de outros a construir e também morar no Lago Sul.

Em 1959, foram construídas, nas quadras internas do Trecho 0, atual QI 3, 20 casas para os oficiais da Aeronáutica, devido ao fato de a área ficar próxima da Base Aérea.

 

 

Foto: Arquivo Público do DF

[Olho texto=”Você sabia? Os primeiros moradores do Lago Sul foram Ney Dutra Ururahy, que era chefe de gabinete de Israel Pinheiro, e Joaquim Alfredo Tavares, chefe do Departamento de Terras e Agricultura da Novacap. Eles ocuparam as casas dias depois delas ficarem prontas, em junho de 1958″ assinatura=”” esquerda_direita_centro=”centro”]

As casas não tinham luz nem água, usavam lampiões de querosene e a água chegava na carroceria de caminhões ou camionetes. “Mais tarde, quando começaram a erguer a igrejinha (de madeira) de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, o pároco comprou um grupo gerador que cedia energia aos vizinhos durante algumas horas”, conta Lourenço Fernando Tamanini, no livro Brasília, Memória da Construção: A surpreendente história do Lago Sul e outras histórias exemplares.

Tamanini morou no Lago Sul. No livro, ele conta que a casa, na QI 5, comprada em 1972, era “não só é a mais antiga do bairro, mas possivelmente a mais antiga do Distrito Federal”. Segundo ele, ela foi edificada no começo de 1957 e abrigou engenheiros da Companhia Construtora Brasileira de Estradas (CCBE), empresa paulista de terraplenagem que se deslocara para o Planalto Central para participar dos trabalhos de construção da nova capital. “Não era uma casa isolada, fazia parte do acampamento da empresa, que agrupava algumas outras edificações, alojamentos, oficinas, almoxarifado e até uma piscina”, diz o livro.

Lago Sul, nem de graça

Mas a história do Lago Sul se confunde à de Gilberto Salomão, o primeiro empresário a investir naquelas terras no fim do mundo. O empresário, que chegou com Brasília ainda em construção, em setembro de 1958, comprava lotes na Avenida W3 Sul, construía e vendia as modestas casas. Mas quando os lotes foram escasseando e encarecendo, ele achou ter encontrado nos terrenos do Lago Sul a solução: eram maiores e custavam menos, muito menos.

Vista do Lago Sul quando o Centro Comercial Gilberto Salomão ainda estava em construção. Foto: Arquivo

“Construí logo sete casas que ficaram prontas em 1962. Mas não apareceu comprador. Eu facilitei o pagamento e nada”, conta. O tempo foi passando e, desapontado, Gilberto decidiu alugar as casas, mas também não apareceram interessados, mesmo depois de o anúncio ter sido repetido semana após semana. “Resolvi então oferecer as casas a parentes e amigos para morarem de graça. Desta forma eu não precisaria me preocupar com a manutenção e com impostos. Ninguém aceitou, nem meu irmão”, recorda-se.

Lojas do Centro Comercial Gilberto Salomão. Foto: Arquivo Público do DF

Ninguém queria morar em um lugar longe, cheio de mato e com difícil acesso. As casas continuaram fechadas, solitárias e sem vizinhos até 1965, quando o médico pioneiro José Farani, que construiu o primeiro hospital particular de Brasília, o Santa Lúcia, chegou. Gilberto começou a se perguntar o motivo pelo qual seu empreendimento não tinha dado certo e, em conjunto com diretores da Novacap, chegou a uma resposta: faltava comércio no bairro.

Foi assim que ele comprou um terreno e começou a construção do centro comercial que leva seu nome. Quando o Gilberto Salomão começou a ser construído, em 1965, existiam no Lago Sul pouco mais de 50 casas, incluindo as 15 erguidas pela Novacap, as 20 da Aeronáutica e as sete construídas pelo empresário pioneiro. Subiu para 497 após a inauguração do conjunto de lojas, em 1968. ”Foi um bom avanço, mas ainda insignificante em relação aos 5.958 lotes previstos no projeto de urbanização”, afirma o pioneiro Tamanini.

As pontes só chegaram ao Lago Sul seis anos depois. A primeira deveria ter sido a Costa e Silva, um projeto de Oscar Niemeyer feito em 1967. As obras, iniciadas em 1973, ficaram anos paralisadas e a ponte só foi inaugurada em fevereiro de 1976.

Inauguração da primeira ponte no Lago Sul. Foto: Arquivo Público do DF

A primeira a ser de fato utilizada foi a Ponte das Garças, conhecida como Ponte do Gilberto, cuja construção durou poucos meses. Feita em um trecho estreito e pouco profundo do lago Paranoá, as obras começaram em junho de 1973 e a inauguração ocorreu em janeiro de 1974.