05/07/2020 às 09:14, atualizado em 05/07/2020 às 09:49

Filmes que alimentam almas

Cineastas exibem produções locais para abrigados de acampamentos sociais do GDF. Iniciativa dá dignidade cultural e inserção social

Por Lúcio Flávio, da Agência Brasília | Edição: Freddy Charlson

Foto: Paulo H. Carvalho/Agência Brasília

As exibições acontecem às terças e quintas-feiras, com curtas e longas-metragem. Foto: Paulo H. Carvalho/Agência Brasília

O corpo não se sustenta em sua plenitude se o espírito, a alma, o lado invisível que existe dentro de cada um, não for alimentado. Daí a relevância da letra de Comida, música da banda paulista Titãs, que diz: “A gente não quer só comida/A gente quer comida, diversão e arte”. Eis o prisma que norteia o projeto de exibição de filmes nos alojamentos provisórios do Governo do Distrito Federal que abrigam quase 400 pessoas em situação de rua. No momento, são 176 abrigados no Autódromo Nelson Piquet (Plano Piloto) e 175 no Estádio Abadião (Ceilândia).

“Aqui a gente busca parcerias o tempo todo para proporcionar esse tipo de lazer. É uma forma de entreter essas pessoas que têm uma luta diária contra o vício e que sofrem com a saudade da família”, comenta uma das coordenadoras do projeto, Karen Cury, que faz parte do Instituto Tocar, OnG e responsável pela gestão do espaço no Plano Piloto, a partir de um termo de cooperação assinado com a Secretaria de Desenvolvimento Social. “Eles adoram as sessões de cinema, muitos se identificam com as histórias e refletem sobre suas condições em cima do que assistem”, diz.

As exibições acontecem todas às terças e quintas-feiras. Na terça, é dia de Cine Fusca, iniciativa privada e voluntária do artista de teatro e circo Rafael Trevo. Paulistano radicado na cidade desde 2015, ele transformou em cinema um velho Fusca, modelo 1964, e leva, em estilo mambembe, histórias reais e de ficção em curta-metragem para projetos sociais como esse do alojamento provisório do GDF. “Ele já está com a gente aqui há quase dois meses. O pessoal acostumou, é só ele buzinar lá fora que a galera fica animada”, conta Karen Cury.

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Todas as quintas-feiras entra em cena a parceria promovida entre as secretarias de Cultura e Economia Criativa (Secec) e de Desenvolvimento Social (Sedes), com a exibição de filmes que fazem parte do acervo da Secec. Grande parte são produções da cidade contemplados em parte ou totalmente com recursos do Fundo de Apoio à Cultura (FAC). Para o secretário Bartolomeu Rodrigues, a iniciativa chegou ao local como “um manto de solidariedade”.

“A nossa secretaria atendeu prontamente ao apelo da Sedes, colocando à disposição do projeto o nosso acervo”, relembra o gestor. “Com essa ideia estamos levando, ao mesmo tempo, cultura e dignidade para essas pessoas, atrativos que chegam nesse momento, como um agasalho, levando-os a refletir sobre o seu papel na sociedade”, destaca.

Projecionista de filmes há 40 anos na Secretaria de Cultura, três deles no Cine Brasília, um dos raros cinemas de rua do País, Elmar Umberto concorda com o discurso do secretário. “Interessante essa iniciativa porque é um pessoal que fica ilhado aqui e que teve pouca experiência com o mundo do audiovisual”, observa. “É um projeto que não está criando plateia, mas para eles é uma oportunidade de ver outros pontos de vista, uma forma de abrir um novo olhar, ter um momento de descontração fora da televisão”, avalia, orgulhoso de seu trabalho. 

Histórias de Brasília

As exibições às quintas-feiras são as mais concorridas por trazer não apenas curtas-metragens, mas, também, longas-metragens, geralmente com narrativas que falam da nossa cidade. São histórias como a do sucesso Faroeste Caboclo, filme de 2013, do cineasta brasiliense René Sampaio, baseado na canção épica escrita pelo líder da Legião Urbana, Renato Russo.

“O projeto consiste em exibir filmes brasilienses. Uma das razões é a de envolver a comunidade cinematográfica da cidade em iniciativas como essas”, pontua Rodrigo Torres, programador dos filmes do Cine Brasília e responsável pela seleção dos trabalhos exibidos no alojamento provisório do governo dedicado às pessoas em situação de vulnerabilidade social. “A gente precisa de atividades como essa porque eles só podem sair uma vez por dia, ficam mais aqui dentro do que fora. Então, tentamos entretê-los da melhor forma possível, tanto física quanto mentalmente”, reforça a coordenadora do alojamento, Karen Cury.

Na programação da última quinta-feira (2), foram exibidos cinco curtas-metragens produzidos na cidade. Entre eles, Cuidado! Palhaços, de Pablo Peixoto, que conta a trajetória de dois irmãos palhaços, Saúde e , e sua experiência na arte no DF.

O outro, Meio-dia Completo, documentário afetivo que narra os desafios enfrentados por um pioneiro que saiu cedo do interior do Nordeste, para participar da construção de Brasília. “É um projeto bonito e ousado, que dá dignidade cultural e transcende o simples ato de exibir um filme, porque é uma iniciativa que promove a inserção desse público no mundo do cinema”, agradece Maurício Witczak, cineasta e produtor de outros três projetos exibidos no alojamento na quinta-feira (2). “Sempre que posso, indico meus colegas para aderir à ideia, e ceder o direito de imagem para o projeto.”

Foto:Paulo H. Carvalho/Agência Brasília

Enquanto as chances na vida não aparecem o piauiense Francisco de Assis mata o tempo, entre outras coisas, assistindo filmes no alojamento. Foto:Paulo H. Carvalho/Agência Brasília

Piauiense de Teresina, Francisco de Assis já nem lembra mais quando chegou em Brasília para trabalhar na construção civil. Aos 61 anos, apesar dos percalços que a vida lhe trouxe em alguns momentos, ele garante não desistir de tentar a sorte com o destino. Assim, com o Ensino Médio completo, sonha com uma vaga no Ensino Superior, no curso de Direito.

Até tentou o Enem, mas enquanto a oportunidade não chega, vai matando o tempo, entre outras coisas, assistindo a filmes no alojamento. Confessa que gosta de comédias regionalistas, como O Auto da Compadecida e Menino da Porteira.

“Já vimos muitos filmes excelentes e divertidos e gosto daqueles que contam a história de Brasília, das pessoas que trabalharam aqui e ajudaram a fazer essa cidade”, relata. “É uma maneira legal de passar o tempo, um passatempo que nos ajuda a refletir sobre nossas vidas, sobre o que nos aconteceu, ao nos identificarmos com o que está passando na tela”, emenda o mineiro Ramon de Sousa, 28 anos, há sete meses no Distrito Federal.