Viva Brasília 64 anos: As várias faces da estética brasiliense
Prestes a completar 64 anos de vida, Brasília é a capital responsável por abrigar todos: desde candangos que edificaram prédios, passando pelos descendentes e aqueles que vêm somente para visitar e conhecer a construção da identidade cultural do Quadradinho. No especial Viva Brasília 64 anos, a Agência Brasília convida você a lembrar, conhecer e viver o jeitinho brasiliense, contemplado pela arquitetura, culinária, arte, esporte e outras áreas. Forjada na diversidade, a capital tem gerações que nasceram aprendendo a fazer o balão, descer a tesourinha e pegar o zebrinha – coisas que fazem sentido para os brasilienses e compõem o estilo de vida da cidade, mas podem causar estranhamento a quem vem de fora. Arte: Agência Brasília Para a antropóloga e professora do departamento de sociologia da Universidade de Brasília (UnB) Haydèe Caruso, Brasília pode ser pensada de forma muito diversa e com múltiplas identidades devido à própria concepção da cidade, que representa a junção de todas as partes e lugares do Brasil. “A gente não estabelece padrões culturais por decretos ou protocolos, nós vamos vivendo e construindo a identidade cultural. É difícil dizer que há uma única identidade, até pelo distanciamento entre o Plano Piloto e as outras regiões administrativas, onde há vários movimentos que são berço do rap, do rock e do samba brasiliense. É um caldeirão que reúne o diverso que é o Brasil. A pluralidade pode ser nossa identidade”, explica a especialista. Arte, cultura, arquitetura, moda e gastronomia ajudam a compor a identidade única de Brasília, cidade que reúne aspectos culturais de todas as partes do país | Foto: Tony Oliveira/Agência Brasília A antropóloga ressalta, ainda, que a identidade cultural é um processo contínuo de construção, em que a própria linguagem e expressões coloquiais locais podem ser citadas como exemplo. Sotaque brasiliense Para o brasiliense é comum pegar um baú ou camelo e ir ao Eixão do Lazer ou até mesmo morgar embaixo de um ipê e admirar o céu Para o brasiliense, é comum pegar um baú ou camelo e ir ao Eixão do Lazer ou até mesmo morgar embaixo de um ipê e admirar o céu de Brasília – aquele conhecido como o mar da cidade. Depois, quem sabe, ir à Igrejinha e mais tarde ao Cine Drive-In ou ao Conic para um frevo. Se você não é de Brasília, o parágrafo acima pode ser um pouco confuso de entender. Mas não se preocupe, nós o ajudamos a entender o dialeto da cidade que é só o ouro para você não pagar vexa, tá ligado, véi? Essas são apenas algumas expressões típicas que fazem parte do sotaque brasiliense, tão claro para alguns e questionado por outros. O assunto foi tema do documentário Sotaque Capital, produzido pela jornalista Marcela Franco em 2013. No curta, a resposta é que sim, existe um sotaque com características próprias no DF, fruto de uma mistura de diversas regiões do país. “Vinham pessoas de todos os estados para cá. Daí nasceu esse sotaque; dizem que é falado de forma cantada e que comemos algumas letras das palavras”, acentua a jornalista. Outro termo peculiar é “babilônia”, usada para se referir às únicas quadras comerciais do Plano Piloto com ligação subterrânea. Considerada uma quebra de padrão entre as quadras modelos do Plano Piloto, a 205/206 Norte era conhecida como “a quadra estranha do Plano Piloto”, malvista por muitos e amada por alguns, e tema do documentário Babilônia Norte, dirigido por Renan Montenegro, 34. O cineasta estava entre os que passavam pela quadra e a viam de forma diferente. Lançado em 2013, o curta explora os ângulos e espaços arquitetônicos do espaço, fazendo parte de um movimento de identificação cultural em Brasília que surgiu no mesmo ano. “O que mais potencializou esse movimento foi ser um trabalho feito por brasilienses, convidando mais artistas brasilienses para um público brasiliense. É um discurso bem bairrista: feito aqui, por nós, sobre nós e para nós. É pertencer à cidade e dar ressignificado para as coisas”, conta Renan. O diretor aponta que o ano de 2013 foi uma virada para a identidade brasiliense e fez diferença na quadra para o que ela é hoje. A mesma lógica, que parte de ocupar os espaços públicos, é aplicada ao Carnaval de Brasília, que já tem um circuito a contemplar os brasilienses que não precisam mais viajar só para se divertir em bloquinhos. “Para uma cidade nova, dez anos fazem muita diferença. Há um desenvolvimento dos artistas locais e do público. Brasília sempre foi muito fria pela construção arquitetônica e urbanística e pelos endereços cheios de números. Então, até esse movimento de apelidar os lugares, por exemplo, ajuda no processo de chamar a cidade de nossa”, destaca o cineasta. Moda e gastronomia O chef André Castro defende a gastronomia com ingredientes locais: “Precisamos começar a olhar para o quintal da gente” Essa construção de identidade entra em outros campos. Os alimentos típicos do Cerrado são usados na elaboração de menus executivos, festivais gastronômicos e cardápios especiais. Entre os restaurantes que ressaltam essa culinária local está o Authoral, localizado na Asa Sul e comandado pelo chef de cozinha André Castro. Durante o período em que esteve na Europa, André assimilou o importante aprendizado de enaltecer o local. “Valorizar o ingrediente que está próximo a você, seja porque ele faz parte da cultura, seja porque chega até você mais fresco: isso é valorizar, também, toda a cadeia produtiva que está próxima”, pontua. Atualmente, há dois pratos incluídos no cardápio nessa linha. O primeiro leva óleo de babaçu tostado no lugar do óleo de gergelim. É um filé de pescada-amarela com crosta de castanhas brasileiras, musseline de batata-doce roxa, creme de moqueca e vinagrete de milho tostado. No outro preparo, é usada uma técnica espanhola para fazer uma croqueta com massa de galinha caipira com emulsão de pequi. “Infelizmente, o brasiliense ainda conhece pouco do Cerrado. As pessoas nascem e crescem no Cerrado, mas não conseguem falar cinco ingredientes encontrados aqui. Precisamos começar a olhar para o quintal da gente”, comenta o chef. Na loja Verdurão, Wesley Santos trabalha com duas ‘estações do ano’: seca e chuva Não só a culinária é influenciada por características locais do DF, mas também a moda. Enquanto muitos países apresentam estações do ano bem-definidas, a marca de roupas Verdurão, criada em 2003, entende que isso não existe na realidade brasiliense. “Temos duas estações: seca e chuva. E é assim que operamos, com roupas para época de seca e época de chuva. Eu até brinco que a Verdurão começou a falar da identidade cultural de Brasília em uma época em que a gente nem sabia que tinha uma identidade. A marca ajudou a mapear e explicitar essa identidade aos brasilienses”, afirma o diretor criativo da Verdurão, Wesley Santos. Além de ser uma rede de apoio à economia local e às várias famílias que vivem da produção do vestuário, a Verdurão produz roupas sem nada de origem animal. Algumas são feitas com tecidos biossustentáveis, como fibra de bananeira e de cânhamo. “Eu já rodei o mundo inteiro e nunca vi nada minimamente parecido com Brasília. É uma cidade cenário diferente de tudo” Wesley Santos, diretor criativo Uma das missões da empresa é, segundo Santos, “promover Brasília até para gringo conhecer” e “mostrar para o resto do país o quanto Brasília é massa”. Para o diretor criativo, não é tarefa difícil trabalhar com estampas que retratam o cotidiano da capital federal, usando e abusando dos símbolos brasilienses – placas, fauna, flora, gírias, costumes e cartões-postais. “Estamos em uma cidade fora do normal, incrível. Temos um estilo de vida que não se encontra em nenhuma cidade do país. Eu já rodei o mundo inteiro e nunca vi nada minimamente parecido com Brasília. É uma cidade-cenário diferente de tudo”, afirma. Brasília é poesia Com oito livros repletos de poesias que falam sobre Brasília, o poeta Nicolas Behr compartilha dessa paixão pela cidade onde mora há 50 anos. O autor frisa que tudo está relacionado ao choque inicial que teve com Brasília, quando chegou aos 14 anos, vindo de Cuiabá (MT), e deu de cara com uma cidade estranha, nova e árida. O poeta Nicolas Behr foi buscar inspiração nas curvas de Brasília para sua arte | Foto: Paulo H. Carvalho/Agência Brasília “Essa aridez me causou um estranhamento, uma dificuldade de aceitar essa cidade e uma tentativa constante de dialogar com ela. Foi daí que nasceu a minha poesia, da tentativa de decifrar Brasília antes que ela me devorasse. É um conflito bom, que vai diminuindo à medida que você vai se incorporando à cidade”, observa. Behr também comenta que a parte mais visível da estética brasiliense é a contribuição para a arquitetura, sendo impossível falar de Brasília sem passar pelas obras de Oscar Niemeyer. “Antes de Brasília, a arquitetura moderna era feia, pesada, sem leveza, sem graça, sem a criatividade que Oscar Niemeyer nos trouxe. Ele tirou os ângulos retos e trouxe as curvas, deu beleza ao que antes era uma coisa pesada”. Para o poeta, Brasília representa a maior realização do povo brasileiro. “A grande história de Brasília é o que ela simboliza como uma ideia: a transposição para o papel e para o chão de uma tentativa de organizar o caos. Brasília é a cidade mais racional do mundo. É uma cidade instigante, que ganhou em vida e perdeu em mistério”, declara. Ele finaliza reforçando que Brasília, por si só, rende muita poesia: “Aqui não existe limite para a criação intelectual. Brasília é uma cidade muito nova e, por ser nova, não tem uma tradição literária. Isso é bom para o artista, porque a tradição é um peso. Em Brasília, o horizonte está na sua frente”.
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Cultura homenageia Aruc com entrega de ‘totem-monumento’
Fincado no alto do muro branco e azul da Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro (Aruc), o gavião, símbolo da entidade, segue em eterna prontidão. A mais tradicional agremiação do samba do Distrito Federal é signo de lutas. Desde que foi criada em 21 de outubro de 1961, cumpre a jornada de resistência que pode ser traduzida pelas gerações de percussionistas que batem as mãos firmes sobre os seus tambores. O som anuncia que o coletivo nascido e criado no Cruzeiro Velho é um dos representantes mais altivos e aguerridos da diversidade cultural de Brasília. Nesta terça-feira (25), esse batuque ecoou com orgulho. Os passistas, porta-bandeira, mestre-sala e rainhas vestiram-se com as melhores roupas (algumas feitas com a premiação da Lei Aldir Blanc no DF) como se fossem desfilar alinhados na avenida. A homenagem foi recebida como uma rede de proteção em um momento de insegurança jurídica da posse do terreno da entidade | Foto: Divulgação / Secec [Olho texto=”“Representa o esforço de todos, neste momento triste da pandemia, em resgatar o samba no DF, que chegou aqui junto com os construtores de Brasília” ” assinatura=”Bartolomeu Rodrigues, secretário de Cultura e Economia Criativa” esquerda_direita_centro=”direita”] Em torno da entrada da sede, festejavam a inauguração do “totem-monumento”, que anuncia à comunidade e aos visitantes que a Aruc é Patrimônio Cultural Imaterial do Distrito Federal. “O significado desse totem vai além de monumento que reconhece a Aruc como Patrimônio Imaterial do Distrito Federal. Representa o esforço de todos, neste momento triste da pandemia, em resgatar o samba no DF, que chegou aqui junto com os construtores de Brasília. O poeta avisa “não deixe o samba morrer/não deixe o samba acabar” e, ouvindo a força dessa bateria, ficamos emocionados porque, neste momento delicado de 450 mil mortes no Brasil, a vida parece ser maior que toda a tristeza”, contou o secretário de Cultura e Economia Criativa, Bartolomeu Rodrigues. Rede de proteção A chegada da homenagem ao Cruzeiro coincide com um momento de insegurança jurídica da Aruc com a posse do terreno. Emocionado, o presidente da entidade, Rafael Fernandes, acolheu o totem-monumento como se fosse uma rede de proteção. “Sei que temos a Secretaria de Cultura e Economia Criativa do DF como uma aliada nessa luta. Isso reconforta nossa comunidade”, destacou. Representando o Conselho Regional de Cultura, a atriz, influencer, locutora e atual presidenta do CRC, Sheila Campos, ressaltou o reconhecimento físico do totem-monumento como o reforço ao pertencimento e à valorização da cultura como identidade, territorialidade, formação e alma da comunidade. “A Aruc desempenha esse papel há décadas nesse território. Do Cruzeiro, jamais poderá sair. São gerações de moradores e de moradoras que usufruem e se fortalecem juntos com a Aruc”. [Olho texto=”“Aqui, os candangos matavam a saudade do Rio de Janeiro por meio do samba ao mesmo tempo que criavam os primeiros traços culturais desse caldeirão de sons chamado Brasília”” assinatura=” Sol Montes, subsecretária de Difusão e Diversidade Cultural” esquerda_direita_centro=”esquerda”] Legado O secretário-executivo da Secec, Carlos Alberto Jr., e a subsecretária de Difusão e Diversidade Cultural (SDDC), Sol Montes, também participaram da cerimônia e, junto ao secretário, Bartolomeu Rodrigues, foram convidados a conhecer o museu da Aruc, que reúne dezenas de troféus, fotografias, miniaturas de fantasias e outros documentos. “A Aruc é uma comunidade valorosa que move sonhos e vidas durante todo o ano. Esse legado se junta ao samba bom que nos orgulha e a faz ser esse incontestável patrimônio imaterial”, ressaltou Carlos. [Relacionadas esquerda_direita_centro=”esquerda”] “Esse espaço é um símbolo de resistência no meio da cidade. Aqui, os candangos matavam a saudade do Rio de Janeiro por meio do samba ao mesmo tempo que criavam os primeiros traços culturais desse caldeirão de sons chamado Brasília”, completou Sol Montes. A Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro (Aruc) foi reconhecida como Patrimônio Imaterial do DF pelo Decreto nº 30.132/2009. *Com informações da Secretaria de Cultura e Economia Criativa
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Nascidas com Brasília: as ocupações pioneiras
Quando Brasília começou a ser construída, em outubro de 1956, o Planalto Central já era ocupado por dois núcleos urbanos que davam ares interioranos à região onde seria erguida a capital modernista do país. O mais antigo deles, Planaltina, já era uma cidade um século antes de a nova capital começar a ser desenhada. Fundada em 1933, a outra, Brazlândia, era um povoado da área rural do município goiano de Luziânia e tinha menos de mil moradores em 21 de abril de 1960. Com o início das obras, no entanto, as pessoas começaram a povoar o quadrilátero destinado ao futuro Distrito Federal. Primeiro, foram os engenheiros da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap) que chegaram quando Brasília ainda era um descampado de terra e mato para planejar os primeiros passos da construção. Depois, vieram os milhares de trabalhadores, comerciantes e empresários atraídos pelas oportunidades trazidas pela criação de uma cidade do zero, no meio do nada. Por último, chegaram os funcionários públicos transferidos do Rio de Janeiro. O Núcleo Bandeirante tinha existência limitada ao período da construção. Os lotes deveriam ser devolvidos à Novacap no final de 1959. Foto: Arquivo Público do DF Naquela época, todos pensavam que os candangos iriam embora depois da inauguração da capital. A Cidade Livre, onde hoje é o Núcleo Bandeirante, por exemplo, o principal acampamento dos trabalhadores, tinha existência limitada ao período da construção. Os lotes foram cedidos em sistema de comodato, isto é, a escritura não era definitiva e os terrenos deveriam ser devolvidos à Novacap no final de 1959. Brasília, com o projeto primoroso de Lucio Costa e reconhecida como Patrimônio Cultural da Humanidade, fora planejada para abrigar 500 mil pessoas, basicamente todas elas funcionários públicos e suas famílias. Mas a força e persistência dos candangos, que se recusaram a ir embora com a inauguração da capital, fez surgir mais cidades que o previsto pelo urbanista. A partir desta quinta-feira (24), a Agência Brasília publica uma série de três matérias que contam a história das primeiras cidades surgidas ao mesmo tempo que Brasília ou logo após a sua inauguração – hoje chamadas de Regiões Administrativas (RAs), mas originalmente batizadas de cidades-satélites. Essa série faz parte de uma série maior que homenageia Brasília às vésperas dos seus 60 anos. As reportagens são publicadas todas as quintas-feiras desde o dia 21 de abril deste ano. A primeira reportagem fala dos acampamentos que acabaram ficando e se tornaram cidades. Núcleo Bandeirante, Candangolândia, Paranoá, Vila Planalto e Vila Telebrasília. As duas últimas não se transformaram em uma Região Administrativa, mas ajudaram a formar a RA I, o Plano Piloto. Os primeiros acampamentos A Candangolândia abrigava a sede da Novacap até 1959, quando a companhia foi transferida para o Plano Piloto e o local passou a ser conhecido como Velhacap. Foto: Arquivo Público do DF Existe entre os pioneiros uma velha discussão sobre onde nasceu Brasília. O que muita gente não sabe é que, com o início das obras da capital, surgiram, ao mesmo tempo, dois núcleos urbanos com a mesma importância histórica: Núcleo Bandeirante e Candangolândia. Como parte das obras de infraestrutura necessárias à construção de Brasília, foram abertas pela Novacap, em dezembro de 1956, as principais avenidas do Núcleo Bandeirante, chamado de Cidade Livre, previsto para funcionar como centro comercial e recreativo para as pessoas ligadas diretamente à construção de Brasília, pois as cidades de Planaltina, Luziânia e Brazlândia não ofereciam condições e infraestrutura suficientes para sustentação das obras da nova capital. Já a Candangolândia surgiu do primeiro acampamento oficial promovido pela Novacap para administrar as obras de Brasília, em 1956. A cidade abrigava a sede da Companhia, residências das equipes técnicas e administrativas, posto de saúde, hospital, posto policial, dois restaurantes e uma escola para os filhos dos funcionários. Foto: Arquivo Público do DF [Olho texto=”VOCÊ SABIA? Para incentivar a vinda de comerciantes para o Planalto Central, o Núcleo Bandeirante era livre do pagamento de impostos. Daí a origem do nome Cidade Livre.” assinatura=”” esquerda_direita_centro=”centro”] Em 1959, no entanto, a Novacap foi transferida para o Plano Piloto e a Candangolândia passou a ser conhecida como Velhacap. O local, dotado de boa infraestrutura para a época e com variados equipamentos públicos, se tornou uma alternativa de moradia para trabalhadores de todo o país que chegavam para trabalhar na construção de Brasília. Com o fluxo cada vez maior de pessoas que chegavam para a construção de Brasília os acampamentos, que dariam lugar à Candangolândia, se transformaram em uma pequena vila. Logo a população começou a demandar os elementos da vida cotidiana de uma pequena cidade. Cidade desmontada O Núcleo Bandeirante também abrigava o Hospital Juscelino Kubitschek de Oliveira (ou Hospital do IAPI) e o atual Museu Vivo da Memória Candanga. Traçado com apenas três ruas, o loteamento da Cidade Livre estava destinado a ter uso exclusivamente comercial e, por esse motivo, não eram fornecidos alvarás para residências. Em 1957, já existiam, em construções de madeira, armazéns, casas de tecidos, restaurantes, barbearias, tinturarias, marcenarias, açougues, farmácias, escolas (duas), cinema, bares, pensões e hotéis. Também foram erguidos locais para cultos religiosos, como uma igreja batista, um ponto para cultos kardecistas e uma igreja católica. Com a aproximação da inauguração de Brasília e o medo da desmontagem da Cidade Livre, surgiu um movimento de moradores que reivindicava a fixação da cidade, contrariamente ao estipulado pela Novacap. O Movimento Pró-Fixação e Urbanização do Núcleo Bandeirante chegou a ser apoiado por Jânio Quadros em sua campanha presidencial, mas ele posicionou-se contra a fixação depois das eleições. Foi preciso muita luta. De um lado, o governo tentou transferir os moradores para as cidades-satélites do Gama e Taguatinga, já inauguradas, e ameaçou demolir as edificações. Do outro, integrantes do movimento articulavam vagas para abrigar crianças em creches, buscavam apoio de parlamentares e faziam comícios em favor da permanência. A fixação do acampamento e sua transformação em cidade veio com a aprovação e sanção da Lei nº 4.020, em 20/06/61. A partir de então, os moradores passaram a lutar pela implementação da infraestrutura necessária a uma cidade, que foi sendo feita ao longo da década de 1960, momento em que as edificações de madeira foram sendo substituídas, aos poucos, por edificações de alvenaria. A barragem do Paranoá Outra cidade que teve origem a partir de acampamentos de candangos foi o Paranoá. Inicialmente, em 1957, a região era ocupada por trabalhadores dos canteiros de obras montados para a construção da barragem do lago Paranoá. Após a inauguração de Brasília, em 1960, os habitantes permaneceram no local devido à necessidade de conclusão das obras da usina hidrelétrica. Nessa época, o acampamento de operários chamado de Vila Paranoá já era composto por 800 moradias que abrigavam cerca de 3 mil moradores. Ataíde Pereira das Neves e a Igreja São Geraldo: “Todas as crianças eram batizadas aqui”. Foto: Renato Araújo/Agência Brasília “Era muita gente, sete companhias que faziam a barragem e todos os operários moravam nesse acampamento”, conta o pernambucano Ataíde Pereira das Neves, 79 anos, que veio para Brasília em 1957, aos 18 anos, para passear. “Um conhecido nosso tinha vindo para cá, foi buscar a esposa e nos contou coisas maravilhosas sobre Brasília. Eu quis conhecer a cidade que estava sendo construída no meio do nada”, diz. Ataíde veio para passar um mês e ficou dez anos sem voltar para a terra natal. “Achei tanto emprego que acabei ficando. Meu pai era um homem de posses e sempre me questionava, em telegramas, se eu não ia voltar. Mas eu quis tentar. Naquela época pegavam as pessoas que queriam trabalhar pelo braço”, diz. “Trabalhei de cozinheiro para os americanos (da empresa Raymond Concrete Pile Company of the Americas), fui marteleteiro dentro da barragem (operava um equipamento que perfurava o solo e as rochas) e fui tratorista. Até para o Juscelino Kubitschek cozinhei, lá no Catetinho”, enumera o pioneiro. Paranoá na década de 1970. Foto: Acervo pessoal O antigo acampamento da Vila Paranoá foi transferido para onde fica hoje a cidade e o local original tornou-se área de preservação ambiental, o Parque Urbano e Vivencial do Paranoá. Ao andar pelo local, seu Ataíde aponta: “Aqui ficava a delegacia, ali era a escola e minha casa ficava na esquina”. Naquela época, os operários se divertiam em festas que aconteciam na casa de Raimunda Lima Santos, 88 anos, que também chegou em Brasília em 1957. Ela tinha 25 anos e veio acompanhar o marido, que se empregou nas obras da barragem. “Viemos do Piauí em um pau-de-arara. Aqui não tinha nada quando cheguei”, lembra. “Só tinha homem no acampamento. As únicas mulheres eram eu, minha mãe e minha irmã”, conta. Da época da construção da capital, os dois pioneiros guardam boas lembranças. Dona Raimunda recorda-se da dificuldade em fazer compras antes da inauguração da barragem. “Não passava ônibus e nem havia comércio. Tínhamos que ir todo fim de semana para o Núcleo Bandeirante fazer compras para passar a semana”, lembra. Raimunda Lima Santos, 88 anos, chegou a Brasília em 1957, aos 25 anos. Foto: Renato Araújo/Agência Brasília No local onde era o acampamento, ficaram de pé algumas estruturas, como a caixa d’água e a Igreja São Geraldo, construída em 1957 — a segunda igreja mais antiga do DF, tombada pelo pela Diretoria de Patrimônio Histórico e Artístico do Distrito Federal (Depha) em 1993. “Todas as crianças eram batizadas aqui. Era muito trabalho, mas, também, muita alegria. A vida aqui era muito boa”, diz Ataíde. No coração da capital A Vila Planalto decorre da instalação dos acampamentos de várias construtoras que ali se estabeleceram desde 1956 para executar as obras da nova capital. Serviam para abrigar tanto os técnicos envolvidos com as atividades de administração da Novacap quanto funcionários de obra das empreiteiras. Funcionários de diferentes construtoras se instalaram no local durante a execução de diferentes obras, como o Palácio da Alvorada, o Brasília Palace Hotel, além da construção do Eixo Monumental e da Praça dos Três Poderes. Demolição de barracos na Vila Planalto em 1968. Foto: Arquivo Público do DF Em 1958, um grande conjunto de 22 acampamentos se formava ao redor do conjunto das obras prioritárias para a cidade. Como os demais acampamentos de obras, a Vila Planalto estava destinada a ser removida logo ao final dos trabalhos, com a desmontagem das edificações de madeira. Porém, devido à sua localização privilegiada e existência de boa infraestrutura no local, bem como por não haver, à época, nenhuma política habitacional capaz de oferecer melhores opções de moradia para a população, os moradores da Vila Planalto ali permaneceram, criando um núcleo habitacional pioneiro em pleno coração da Capital da República. À beira do lago A Vila Telebrasília surgiu em 1956 como acampamento de funcionários da construtora Camargo Corrêa e se localiza à beira do lago Paranoá, no final da Asa Sul. Semelhante a outros remanescentes de acampamentos pioneiros, já não há exemplos de edificações de madeira originais da época da construção. A lei que regularizou a área e garantiu a permanência dos moradores no local, de 1991, no entanto, exigiu respeito aos padrões existentes de ocupação original com a manutenção da volumetria de edificações baixas e presença de vegetação. Assim, buscou-se a preservação da rua como espaço de lazer e convívio cotidiano, semelhante ao contexto de pequenas cidades tradicionais. A Vila Telebrasília constitui-se, atualmente, como um local de habitação popular dentro do Conjunto Urbanístico de Brasília. E mais um pouco de história… Na próxima quinta-feira (31), o segundo capítulo da série Nascidas com Brasília conta a história da criação das primeiras cidades-satélites. A capital ainda não havia sido inaugurada, mas novos imigrantes desembarcavam no Planalto Central todos os dias. A construção de acampamentos de madeira não atendia à demanda e a Novacap decidiu criar cidades. Taguatinga foi a primeira delas. Confira.
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